Recebi com muita alegria o convite para acompanhar o 16º FENATIFS – Festival Nacional de Teatro Infantil de Feira de Santana como representante do CBTIJ-ASSITEJ BRASIL e debatedora dos espetáculos, num exercício de reflexão sobre as diversas experiências artísticas que podem ser oferecidas às crianças.
O FENATIFS, idealizado e produzido pela reconhecida Cia Cuca de Teatro, é considerado um dos mais importantes festivais do Brasil, atendendo mais de 15 mil espectadores por edição, entre crianças, jovens e adultos. É um dos festivais calendarizados do Estado da Bahia que, desde 2008, acontece na semana da criança, no período de 01 a 12 de outubro, com suas principais mostras.
Este ano, o festival contou com mais de 40 apresentações com a participação de artistas e espetáculos de todo o país. Além disso, ofereceu atividades paralelas, como oficinas, palestras, workshops e debates, além de atividades online, como, por exemplo, o Encontro Online Teatro e Acessibilidade, realizado em parceria com o CBTIJ/ASSITEJ Brasil.
Esta e as demais ações online do festival encontram-se disponíveis no canal da Cia Cuca de Teatro no YouTube.
Durante 12 dias, o FENATIFS ofereceu grandes atrações para a cidade de Feira de Santana, ocupando teatros e realizando apresentações em bairros e na região metropolitana da cidade. Um grande acontecimento que contempla, em sua programação, uma Mostra Nacional, espetáculos da Mostra Interior do Nordeste, Mostra Jovens Talentos e Talentos Mirins, além de espetáculos convidados.
A curadoria de 2024 privilegiou espetáculos de linguagem circense e de palhaçaria, com destaque para o formato de show de variedades, como Show da Percha, da Cia Circo do Asfalto (PB), Nosso Grande Espetáculo, da Adorável Cia (RJ), Os Rais Varia, da Trupe Rais (BA) e A Palhassadamuzikada, da renomada Turma do Biribinha de Circo e Teatro (AL). Alguns espetáculos da programação levaram a palhaçaria para a cena, como Show Avoar, da Minha Companhia (MG), Autômato – Programado para Divertir, do Grupo Dona Zefinha(CE), dentre outros.
Outros grupos trouxeram variedade à programação, com propostas cênicas ligadas à animação em luz negra com o espetáculo Pra Não Dormir, do Cutia Coletivo (PE), animação de objetos com E Se..., da Cia Os Títeres (BA), e o belo Olharidades Narrativas, do Grupo Ramarias (SP), formado por atrizes surdas e ouvintes.
O fato de a programação deste ano ter privilegiado o circo e a palhaçaria se deu, segundo os integrantes da Cia Cuca, por dois aspectos importantes: o primeiro deve-se à afinidade da Cia Cuca com a pesquisa do circo e da palhaçaria. Muitos de seus espetáculos de repertório bebem da linguagem circense e da preparação de atores baseada nas técnicas do palhaço. Outro aspecto está ligado à logística do festival e, infelizmente, à limitação financeira, que impede a produção de investir na vinda de produções mais robustas, com elenco numeroso e cenários grandiosos.
Nesse sentido, a parceria com trupes de artistas de estrutura familiar, especialistas no teatro de itinerância, facilita a vinda de bons espetáculos, ao mesmo tempo em que somam na valorização de uma tradição importante nas artes cênicas.
Vale ressaltar que, há 16 anos, o FENATIFS segue como o mais antigo Festival Nacional de Teatro Infantil da Bahia, sendo um importante polo de criação e intercâmbios artísticos. Um verdadeiro patrimônio para a cidade de Feira de Santana e o Estado da Bahia. Por isso, deveria ser visto como tal pela iniciativa pública e privada. É preciso garantir mais recursos para sua viabilidade e continuidade, pensando que a cidade, o estado, os artistas e o público ganham, e muito, com o estímulo a grupos locais e com a vinda de produções artísticas de linguagens e localidades diversas.
As ações do FENATIFS ainda seguiram até 31 de outubro, com atividades formativas e apresentações em escolas e comunidades.
Destaques variados para o Show de Variedades
O Show de variedades esteve presente na programação do festival enquanto formato, mas de certa forma, enquanto conceito, considerando que os grupos que apostaram nessa estrutura cênica são de localidades diferentes do país e, por isso mesmo, colorem essa estrutura com suas idiossincrasias, suas vivências e visões do ofício.
Turma do Biribinha (AL)
É bonito ver como os números apresentados pelos grupos mantém a tradição circense ao mesmo tempo em que são “temperados” com os sotaques, gestuais e especificidades de cada grupo. Para o espectador do festival, isso gera uma experiência muito interessante. Um mesmo formato cênico e diversas leituras. Uma mesma tradição ancorando diversas vivências.
É assim que podemos conhecer, por exemplo, um grupo como o Circo do Asfalto (PB), companhia familiar que viaja em seu motorhome com duas lindas crianças totalmente integradas ao trabalho dos pais. E o Grupo RAIS (BA), que utiliza o formato do show de variedades em prol do ativismo ambiental. Ou a Adorável Cia de teatro (RJ), que trabalha muito bem o casamento entre a tradição e as referências de entretenimento atuais.
O show de variedades da Turma do Biribinha (AL), Apalhassadamuzikada, também integrou a programação do FENATIFS. Contudo, infelizmente, não pude apreciar o espetáculo que, certamente, deve oferecer leituras inventivas e particulares do mesmo formato.
Considerando os diversos shows de variedades apresentados e os dois shows musicais com palhaçaria executados pela Minha Companhia (MG) e Dona Zefinha (CE), proponho registrar alguns destaques:
No quesito “palhaçaria”, todos os espetáculos foram conduzidos por bons palhaços e palhaças, que apresentaram domínio da técnica e momentos muito divertidos. O meu destaque vai para as palhaças Brisa e Tecla, do Show Avoar, pelo carisma, a naturalidade, a docilidade e delicadeza na interação com as crianças.
Brisa e Tecla também brilham no domínio da cena e na relação com o público. Mas o destaque absoluto vai para a excentricidade e humor de Orlângelo Leal no espetáculo Autômato – Programado para divertir. Orlângelo tem uma presença cênica arrebatadora. Quando entra em cena, não conseguimos desgrudar os olhos das ações que ele executa com seus instrumentos musicais.
Brisa e Tecla (Minha Companhia)
O roteiro de Autômato também merece destaque, pelo crescente que se constrói na execução musical e na participação da plateia.
Orlângelo Leal em Autômato – Programado para divertir
É difícil eleger o destaque para uma gag, pois todos os palhaços e palhaças ofereceram bons momentos. Entretanto, destaco a gag da cadeira perfeitamente executada pelo palhaço da Adorável Cia em Nosso Grande Espetáculo. Já o quadro do Frangotão, realizado pelo Grupo Rais, no espetáculo Os rais varia, rendeu boas risadas.
Os shows de variedades foram compostos por vários números que impressionaram o público pela performance e pelo nível de dificuldade. O número de manipulação das bolas de contato realizado pelo malabarista Diou, do Circo do Asfalto no Show da Percha foi encantador.
A bailarina Cecília Viegas do Nosso Grande Espetáculo também fez bonito caminhando na ponta por cima de garrafas de vidro.
No que diz respeito às visualidades, o Show da Percha se destaca por valorizar os elementos cênicos em ambientes com ou sem iluminação, prezando por uma boa composição visual tanto dos cenários, como dos figurinos e adereços.
Para finalizar, destaco três momentos memoráveis do FENATIFS que foram as participações especiais de crianças do público proporcionadas pelo Show da Percha, Autômato – programado para divertir e Os Rais Varia. As crianças Geovana, Lucas e Miguel foram conduzidas com carinho e cuidado pelos artistas e deram um show à parte, provocando uma verdadeira festa na plateia. Uma prova de conexão entre os artistas e seu público. E de que as artes circenses permanecem vivas e pulsantes.
Outras linguagens
Nem só de circo e palhaçaria foi composta a programação do FANATIFS 2024. Além dos espetáculos musicais já mencionados, o grupo Kooca Criações (BA) participou com o espetáculo Encantos do Sertão. Músicas autorais e visualidades inspiradas na cultura nordestina, são cenário para a contação de histórias que evocam o poder da amizade e do companheirismo. A utilização de elementos da cultura regional, como as cabaças e as flores de crochê, embeleza as histórias contadas pelo grupo.
E não posso me referir à contação de histórias sem saudar o grupo Ramarias (SP) com o trabalho Olharidades Narrativas – contos de voz e de ver. O grupo desloca o corpo da mulher surda para o centro do palco, onde ela narra na língua brasileiras de sinais, histórias que remontam a ancestralidade africana.
Uma das atrizes faz a tradução para os espectadores ouvintes. Uma mudança aparentemente simples que desloca nosso olhar, nossa maneira de fruir a obra e nos permite apreciar com encantamento a expressividade da artista surda, que usa seu corpo para dar voz à narrativa. Uma experiência muito especial.
O teatro de animação também figurou na programação com dois espetáculos: E se... do grupo Os Títeres (BA) e Pra não dormir do Cutia Coletivo ((PE). O primeiro grupo trabalhou com a animação de objetos para contar a história de amor entre um escritor e sua máquina de escrever. Mas é claro que essa é a minha versão dessa obra que se coloca aberta para outras interpretações. Essa é a proposta do grupo: Criar lacunas narrativas para que as crianças possam preenche-las com sua própria imaginação. Já o segundo espetáculo se utiliza da animação de objetos com luz negra para revelar a mente inventiva de um menino que não consegue dormir porque sua imaginação o convida para brincar.
Ao longo dos dias em que estive em Feira de Santana acompanhando o FENATIFS pude presenciar crianças e educadoras felizes em ir ao teatro para prestigiar mais uma edição do festival. Sim, o FENATIFS já faz parte do calendário cultural da cidade e as crianças já aguardam pelo passeio que as levará a vivenciar novas experiências no teatro. A isto damos o nome “Formação de plateia”. Graças ao FENATIFS, muitas crianças crescerão familiarizadas com o código teatral, o que possivelmente as levará a serem frequentadoras de eventos culturais ao longo de suas vidas. E sabemos o quanto o contato frequente com a arte pode afetar e transformar as pessoas, ampliando seus olhares e interpretações de mundo.
Pude presenciar também o trabalho árduo e resiliente da Cia Cuca de Teatro que mantém esta e outras ações culturais na cidade anualmente. São artistas, educadores e gestores culturais que abraçam para si a missão de oferecer diversidade cultural e artística para a sua comunidade.
Esse é um belo exemplo do quanto nós, artistas e cidadãos, em parceria com o poder público, podemos transformar a nossa comunidade. As famílias de Feira de Santana, Bahia, Brasil, sentirão os benefícios dessa experiência contante. Por isso, só podemos desejar vida longa a esse projeto. E desejar também que, assim como a Cia Cuca e outros grupos maravilhosos desse país que abraçam essa missão, mais artistas entrem nessa ciranda pela Cultura Infância.
Nas próximas páginas farei uma exposição mais detalhadas dos espetáculos que vi no FENATIS 2024.
Avoar: Brincadeiras, humor e delicadeza para crianças
Já conhecia as palhaças Brisa e Tecla, que estiveram em Salvador com um espetáculo para crianças chamado Boo, aproximadamente dois anos atrás. Na ocasião, já havia me encantado com o humor e o carisma das artistas que integram a “Minha Companhia”, criada em 2019 pelas mineiras Janaina Morse e Maria Tereza Costa.
No Show Avoar, espetáculo que integrou a programação do FENATIFIS, as artistas executam músicas autorais e interativas, convidando as crianças a participarem de vários momentos de brincadeiras combinadas com poesias, imagens e estímulos sensoriais.
Segundo Janaína e Tereza, as músicas executadas no show foram compostas durante a pandemia, através de edital emergencial da Lei Aldir Blanc. A primeira ação foi o lançamento de um álbum. Com a reabertura pós-pandemia, as artistas conceberam o show que une suas belas vozes à ampla experiência nas técnicas de palhaçaria, com quadros muito divertidos.
O show se revela uma verdadeira pérola para as crianças da primeira infância. As músicas estimulam a imaginação, e as crianças são convocadas a participarem de forma delicada, sem imposições. Esse é o grande diferencial do trabalho. Na contramão de diversos shows infantis que limitam a participação da criança na repetição de comandos - que, na maioria das vezes, só estimulam a euforia e o ritmo frenético (como “Bata palmas! Mais forte! Dá um grito! Pula! Pula!”) -, Brisa e Tecla propõem uma interação muito mais suave, baseada nas respostas que as crianças criam a partir da escuta das canções. Elas evitam a simples repetição e buscam um diálogo verdadeiro com seu público. É claro que há momentos de euforia e prevalência do ritmo e da dança, mas o roteiro do show busca o equilíbrio e valoriza a participação efetiva das crianças.
Vale salientar também o cenário desafiador da apresentação assistida por mim. O show foi programado para acontecer no auditório de uma escola sem recursos técnicos, e cuja acústica poderia comprometer a performance das artistas. As crianças presentes nesta sessão também eram um pouco mais velhas do que a faixa etária indicada, o que aumentava as chances de as artistas perderem o controle do público. Felizmente, isso não aconteceu.
A trajetória das palhaças Brisa e Tecla está ancorada na performance em escolas, hospitais e outros espaços não convencionais. Essa experiência, aliada à técnica da palhaçaria, permite às artistas uma leitura rápida do público e a combinação de estratégias de comunicação eficazes.
Assim, as crianças foram conduzidas com delicadeza, fugindo da armadilha eufórica e sendo convidadas a uma interação genuína, baseada na escuta, na compreensão dos códigos e em respostas criativas. Brisa e Teca desejam mais do que imposição da participação com palmas e gritos; elas buscam um diálogo criativo, que estimula a imaginação do pequeno público.
|Mais que um bom espetáculo, o Show Avoar pode ser considerado uma vivência criativa para as infâncias. E as palhaças Brisa e Tecla deram uma aula de como interagir com a plateia criança com respeito e comprometimento.
Olharidades narrativas – Arte sensível e acessível
O Grupo RamariaS, composto por mulheres surdas e ouvintes, narra histórias ligadas à afro-ancestralidade em seu projeto Olharidades narrativas - contos de ver e sentir. O nome RamariaS deriva de “rama”, “ramificação”, simbolizando a união dessas mulheres que se reúnem para semear histórias.
Desde os tapetes e bordados que compõem a parte visual do espetáculo, aos gestos das atrizes e sonoridade que ambienta as narrativas, tudo evoca a delicadeza de um trabalho artesanal.
A proposta surpreende por, com simplicidade e poucos recursos, deslocar nosso olhar e ampliar nossas possibilidades de conexão com a obra. Isso se deve a decisões aparentemente simples, como deslocar a figura que se comunica em LIBRAS do canto do palco - onde geralmente estamos habituados a vê-la — para o centro da cena, conferindo protagonismo à artista. Tais escolhas fazem toda a diferença no discurso, na estética e na fruição, convocando-nos a uma experiência que descondiciona nossos sentidos.
A inversão dos papéis proposta, onde a atriz surda assume o protagonismo enquanto a atriz que ouve e fala assume o papel de tradutora, ocupando o canto da cena, é o que nos salta aos olhos logo no início do espetáculo. É um movimento que vem carregado de significado, dentre eles, a materialização poética do significado de empatia.
A experiência torna-se ainda mais rica ao apreciarmos a postura cênica da atriz ao narrar a história em língua brasileira de sinais. Sua expressividade corporal, aliada à dramaticidade do olhar e às expressões faciais, revela um corpo que dança e comunica plenamente. Uma performance que convida a plateia a explorar novas formas de fruir sonosridades, silêncios e o uso dos espaços, demonstrando o quanto podemos descobrir e aprender ao ceder espaços de privilégios a corpos tantas vezes invisibilizados pela sociedade. Soma-se a isso o fato de grande parte da plateia ser composto por pessoas com deficiência auditiva, o que nos permitiu aprender novas maneiras de apreciar e reagir à proposta cênica, tornando a experiência, como um todo, verdadeiramente especial.
Por tudo o que foi comentado, fica evidente que, do ponto de vista conceitual, o trabalho é impecável. A escolha das histórias relacionadas à matriz africana, acertada e significativa, reflete o propósito da obra: dar visibilidade a narrativas e corpos historicamente invisibilizados. No entanto, a execução ainda precisa de alguns ajustes. O espetáculo mostra um grande potencial, mas ainda necessita de amadurecimento. Ideias promissórias – desde a entrega cênica até as intervenções sonoras – estão presentes, mas em estado bruto, carecendo de lapidação.
Como se trata de uma proposta criada para ser oferecida em diversos espaços, sejam eles cênicos, alternativos, ruas, instituições ou escolas, é essencial considerar como os elementos de cena, iluminação e sonorização podem ser adaptados a cada ambiente, de forma que a concepção visual e a ambientação sonora não sejam comprometidas.
Investir no treinamento de canto e na manipulação de instrumentos e elementos sonoros poderá trazer novas nuances ao espetáculo. A partir desses exercícios, muitas ideias poderão surgir, contribuindo para o aprimoramento do espetáculo como um todo.
Desejo vida longa ao Olharidades Narrativas para que, à medida que ganhe experiência, esses ajustes ocorram naturalmente, permitindo que o espetáculo cresça cada vez mais. Trata-se de uma proposta que merece ser vista por muitos, pois nos proporciona uma bela experiência estética e cidadã.
E se... – Um convite à cocriação.
Os Títeres – Teatro de Animação, uma companhia residente em Lauro de Freitas (BA), apresentou o espetáculo E se... nos palcos do FENATIFS. O grupo se destaca por seu compromisso com a pesquisa cênica e acadêmica, desenvolvendo uma abordagem prática e teórica no campo do teatro de animação. Yarasarrath Lyra, uma das fundadoras da companhia, defende o investimento na criação a partir do imaginário, além da missão de levar seus espetáculos especialmente às escolas e comunidades em que estão inseridos.
Na cena inicial de E se... , presenciamos um diálogo não verbal entre uma luminária e uma máquina de escrever. Pela forma como esses objetos interagem, percebe-se que o tema da conversa gira em torno de um personagem que logo chega à mesa para iniciar seu trabalho. Tal personagem ganha vida quando a manipuladora coloca um pequeno chapéu e óculos sobre sua própria mão, criando a imagem encantadora de uma figura masculina. A narrativa se desenvolve entre a chegada de cartas misteriosas e as tentativas desse personagem de trabalhar em sua máquina.
Como o espetáculo não possui falas articuladas (os personagens emitem apenas sons), o que vemos em cena oferece várias possibilidades de interpretação. A imaginação da criança é estimulada a completar a história, e as artistas relatam que, muitas vezes, as crianças acabam narrando o espetáculo enquanto ele acontece. A criança é vista como um espectador ativo, que precisa estar conectado à obra. Não há respostas prontas; nada é entregue de bandeja.
Assim, a história entre a luminária, a máquina de escrever e seu escritor podem encontrar caminhos e significados muito diferentes, dependendo da imaginação de quem assiste. No entanto, ao ler a breve sinopse apresentada na programação do festival, nota-se que existe uma trama específica envolvendo uma personagem que não aparece na história, de quem o escritor recebe as cartas. Sem a leitura desse texto anteriormente, torna-se difícil compreendê-la.
Isso me leva a questionar: se a proposta é que cada um faça uma interpretação livre do enredo, por que a sinopse aponta para uma trama específica entre os personagens? E, se é importante para o grupo que essa trama específica seja detalhada, por que não fornecer pistas mais claras para guiar o espectador nessa linha narrativa?
A meu ver, essa reflexão se resume a uma questão de escolha: ou a obra é assumidamente aberta, ou, se há fragmentos de narrativa que se deseja que o espectador acesse, eles precisam ser mais evidenciados, conduzindo o público, ao menos em parte, a um caminho comum.
Como não li a sinopse apresentada pelo grupo anteriormente, ao assistir ao espetáculo, minha imaginação me levou a uma interpretação própria, a partir do olhar de uma mulher adulta que trabalha com a escrita. Para mim, E se... narra uma história de amor pela escrita e pela criação. Foi assim que as imagens me inspiraram, e a experiência, nesse sentido, foi muito satisfatória. A beleza da proposta é justamente a variedade de interpretações que as imagens criadas podem suscitar.
Outro ponto que merece destaque é a escolha do grupo por animar objetos que não são familiares às novas gerações, como a máquina de escrever e o hábito de escrever e receber cartas. Isso torna a história ainda mais curiosa aos olhos das crianças, mas também pode abrir espaço para múltiplas interpretações, já que o desconhecimento desses objetos pode afastar o entendimento do espectador da sinopse apresentada pelo grupo. Observar esse ponto, me levou a questionar: será que essa sinopse é realmente necessária?
Acredito que a beleza do espetáculo está em ser, de forma consciente, uma obra aberta, que se constrói junto com o público a cada sessão, a partir do diálogo entre as imagens apresentadas e a imaginação de quem assiste. E se... tem o potencial de, a cada apresentação, proporcionar uma linda experiência de cocriação com as crianças. É um espetáculo que desperta curiosidade pelos objetos utilizados, pela história contada e pelas diversas versões que podemos criar a partir do que nos foi apresentado.
Nosso Grande espetáculo: O riso nos conecta.
A Adorável Cia. é uma companhia artística fundada pela bailarina e acrobata Cecília Viegas e pelo ator e palhaço Marquinho Camelo, com sede em Guapimirim, RJ. Juntos, o casal percorre o Brasil apresentando seus espetáculos, e, segundo eles, buscam construir laços de afeto em cada lugar que visitam. Eles acreditam no poder do riso como uma força capaz de conectar as pessoas.
Nosso Grande espetáculo, show de variedades apresentado por eles no festival, mescla cenas de palhaçaria com números sofisticados, que exigem precisão e técnica, além de brincar com referências do mundo pop, como a paródia da cena musical da animação Frozen.
Os números que exigem força e técnica são muito bem executados e evidenciam um treinamento constante não só na técnica, mas também no jogo estabelecido entre a dupla. A cumplicidade entre eles é visível: uma conexão que cria uma forma de comunicação própria, onde olhares e pequenos gestos se tornam códigos compreendidos apenas por ambos. Essa sintonia conduz o espetáculo e permite que os artistas tomem decisões rapidamente diante de imprevistos. Marquinhos Camelo destaca essa característica como central em seu trabalho, diferenciando jogo e improviso. O casal investe no jogo — uma comunicação afinada que permite lidar com o improviso de forma mais segura e espontânea.
O que me chamou a atenção neste espetáculo foi o resgate do vínculo histórico entre a tradição circense e o diálogo com o popular. Isso fica evidente no número final, uma paródia musical de Frozen. A entrada da personagem Elsa poderia ser vista como uma tentativa apelativa de agradar ao público, mas é apresentada como uma proposta paródica que remonta aos antigos números do circo-teatro e até os famosos e amados Trapaclipes dos Trapalhões na TV. O resultado é uma cena divertida e agradável de assistir: para as crianças, uma sátira de algo familiar; para os adultos, uma experiência de memória afetiva.
Nosso Grande Espetáculo traz à cena o melhor da linguagem circense: uma habilidade de encantar o público, seja pela sensação de perigo proporcionada pelos números, pela graciosidade dos movimentos da bailarina ou pelo humor do palhaço. Uma atração muito bem recebida pelas crianças que estavam presentes e curtiram o espetáculo naquela manhã.
Show da Percha: A tradição circense no asfalto.
O Circo do Asfalto é um grupo familiar que viaja pelo Brasil e pela América Latina em um motorhome, apresentando seus espetáculos, promovendo ações sociais e atividades formativas.
Com o Show da Percha, a trupe resgata a tradicional percha de equilíbrio, uma modalidade antiga que, segundo o grupo, é pouco praticada devido ao seu alto grau de dificuldade. Esse número envolve uma acrobata que sustenta um mastro enquanto o outro sobe até o topo para realizar acrobacias. Esse é, naturalmente, o número que encerra o show. Antes dele, porém, a palhaça Francisquinha e o malabarista Diou apresentam números de acrobacia, contorcionismo e mágica, tudo enriquecido com gags, muito humor e uma interação incrível com a plateia.
Estamos diante de mais um espetáculo de variedades, comandado por uma dupla de circenses com ampla experiência, domínio da linguagem e uma excelente conexão com o público. Além do número de percha já mencionado, Diou apresenta um desempenho impressionante com bolas de contato. Sua habilidade em manipular as bolas encanta tanto crianças quanto adultos pela leveza dos movimentos e pela beleza cênica, sendo, sem dúvida, um dos momentos de destaque do espetáculo.
A trupe também se destaca pelo cuidado visual com a apresentação. Embora o espetáculo tenha sido mais vezes apresentado em praças e espaços ao ar livre, para o festival ele foi montado no teatro. Eles souberam aproveitar muito bem os recursos teatrais, utilizando a iluminação e os efeitos cênicos para tornar o espetáculo ainda mais grandioso.
O final do espetáculo é emocionante, quando os artistas apresentam seus filhos: o mais velho, que atua como operador de som, e o mais novo, que já começa a aprender o ofício e encanta o público com uma demonstração fofa de cambalhota. Com sua trajetória e habilidades, o Circo do Asfalto proporciona uma experiência cativante, que remete à tradição das famílias circenses que percorrem estradas para levar a arte onde o povo está. Que prazer conhecê-los.
Os Rais Varia: Arte e consciência
A Trupe Rais, residente de Itaparica (BA), levou o espetáculo Os Rais Varia para a programação do FENATIFS, um show de variedades apresentado em escolas e praças de Feira de Santana e região metropolitana. Os palhaços Sirikita e Sujeitão divertiram crianças e adultos com números que, por meio de humor e criatividade, abordaram questões sérias sem perder a leveza.
A Trupe, formada por artistas e ativistas ambientais, define-se como um grupo multilinguagem com foco na conscientização ambiental através da arte. Em Os Rais Varia, eles realizam números circenses e esquetes participativos que, de forma acessível e bem-humorada, trazem informações importantes sobre o tratamento de resíduos sólidos. O espetáculo também inclui ativismo feminista, com o quadro cômico da “domadora de feras”, onde a palhaça ensina o público a “domar” o Frangotão, um animal macho que demonstra comportamentos de superioridade. O espetáculo usa também elementos de referência da cultura local, como o samba de roda e a capoeira. O berimbau, construído com lata, conduz uma interação com as crianças que, de forma afetuosa, as envolve integra à proposta.
A ideia de reciclagem não está apenas no discurso, mas também nos elementos visuais, como figurinos e adereços de cena. No entanto, a dupla escolheu usar esses materiais de forma crua, sem customizações, o que pode comprometer a estética do espetáculo. Embora a rusticidade dos materiais faça sentido como elemento conceitual, em um espetáculo de rua destinado a crianças e famílias, transformar os resíduos em adereços esteticamente mais elaborados poderia fortalecer a mensagem de reciclagem e reutilização.
O espetáculo evita o tom didático porque traduz suas mensagens em cenas divertidas que geram a cumplicidade do público, o que torna a experiência educativa sem ser maçante. Incorporar resíduos estilizados e visualmente bem construídos poderia ampliar esse efeito, incentivando a plateia a ver o potencial transformador da reciclagem e da reutilização do lixo.
A Trupe Rais assume uma difícil missão de despertar a consciência ambiental em um mundo alienado e à beira do colapso. É um caminho admirável de resiliência — e, mais do que nunca, necessário.
Autômato – Programado para divertir: Música e comicidade de primeira!
O Grupo Dona Zefinha, com sede em Itapipoca (CE) e 30 anos de trajetória é reconhecido por seus trabalhos musicais e dramaturgia própria, transitando entre as linguagens da música, elementos do circo, teatro de caixa e teatro de rua. Suas produções já circularam por diversos estados do Brasil e por países da América do Norte, América do Sul, Europa e Ásia. À frente do grupo estão os irmãos Orlângelo Leal, Ângelo Márcio e Paulo Orlando. O espetáculo solo Autômato – Programado para Divertir, apresentado no FENATIFS, tem criação e performance de Orlângelo Leal, e é fruto da pesquisa desenvolvida pelo grupo.
Automático é o tipo de espetáculo que funciona para todos os públicos e em qualquer espaço. E para ratificar essa afirmação, basta dizer que no festival, ele foi apresentado para uma das plateias mais desafiadoras que existem, e quem faz teatro para as infâncias e juventudes há de concordar comigo: a plateia pré adolescente de escola. São jovens que estão na transição entre a infância e a adolescência, que estão sempre muito suscetíveis aos julgamentos dos pares, e por isso mesmo, resistem a embarcar em propostas interativas. O medo da crítica e da exposição dificulta a comunicação com os artistas, que precisam ter muito jogo de cintura para superar essas barreiras para se conectar com eles.
Orlângelo, o artista por trás do solo Automato , nos dá uma verdadeira aula de conexão com o público. Lá estava ele, sozinho, diante de mais de duzentos pré-adolescentes, sem se intimidar. Com um olhar firme e magnético, ele envolveu a plateia, tornando cada movimento e interação com os instrumentos curiosos e instigantes. Orlângelo é, sem dúvida, um artista de primeira grandeza.
Ao longo do espetáculo, ele nos apresenta instrumentos musicais excêntricos, ensinando suas sonoridades e construindo pequenas células musicais com o auxílio de um “repetidor de som”. Um a um, esses instrumentos ganham vida, até que, ao final, o artista forma uma orquestra, utilizando-os simultaneamente e contando com a participação do público, que é convidado a interagir com sons e palmas na construção da música.
O roteiro do espetáculo segue um crescendo envolvente, levando o espectador a um final arrebatador, com a participação de todos. Foi uma das experiências cênicas mais bonitas que já presenciei. No palco, apenas um artista e uma mala com instrumentos. Essa simplicidade visual se tornou grandiosa pela qualidade cênica de Orlângelo. A plateia, encantada, se envolveu em uma festa onde todos se divertiam e brincavam juntos. Que coisa bonita é a magia do teatro. E Orlângelo sabe como fazer a magia acontecer. Agradeço ao FENATIFS pela oportunidade de assistir a Autômato.
Pra não dormir: Quando a vontade de brincar é mais forte.
“Papai, eu quero dormir. Mas meus olhos querem brincar.” Com apenas três anos, meu sobrinho dizia essa frase quando meu irmão tentava colocá-lo para dormir. Resistir ao sono é comum entre crianças pequenas, que não querem perder um minuto das novidades que o mundo oferece. E, ao serem obrigadas a fechar os olhos, é como se abrissem os olhos internos, explorando a mente inventiva e ativa que permanece ansiosa para se expressar. O Cutia Coletivo, de Recife (PE), inspirou-se nessa ideia para realizar o musical Pra Não Dormir.
O grupo, com formação inicialmente musical, combina canções autorais, teatro e contação de histórias para criar espetáculos ao público infantil. Em Pra Não Dormir, a trama se passa no quarto de Beto, um menino de 10 anos que tenta evitar o sono sem fazer barulho, para não chamar a atenção da mãe. Sua amiga imaginária, Rosália, que vive na guarda-roupa, se junta a ele nas brincadeiras, dando vida a móveis, objetos e brinquedos e compartilhando com Beto suas próprias fantasias e dilemas.
A animação em luz negra é um dos acertos do espetáculo, especialmente quando as formas que surgem refletem a imaginação de Beto resistindo ao sono. As crianças, sobretudo as menores, são transportadas por essa proposta lúdica e se identificam com a história. Já os adultos são levados a reviver memórias, afinal, quem nunca, quando criança, resistiu ao sono, deixando a mente divagar?
As conversas entre Beto e sua amiga imaginária abordam temas sensíveis, como o bullying na escola e a morte do avô durante a pandemia. No entanto, alguns pontos na concepção do espetáculo não me pareceram bem definidos. Causa-me estranheza que um menino de 10 anos ainda tenha uma amiga imaginária. O comportamento de Beto no quarto lembra mais o de uma criança de 5 ou 6 anos, o que pode causar confusão sobre a faixa etária a que a peça se destina.
A animação em luz negra é um recurso atraente para as crianças e traduz bem a mente inventiva de uma criança pequena. As canções ajudam a conduzir os momentos de brincadeira, mas as cenas entre as músicas se alongam em diálogos que, por vezes, se repetem ou dizem o mesmo que as canções já expressam. Se a intenção do autor era explorar temas como bullying e luto através das conversas com uma amiga imaginária, a execução não parece convincente, já que é difícil acreditar que Beto, com sua caracterização e comportamento, é um menino de 10 anos compreendendo essas questões de forma mais profunda.
Outro ponto é a caracterização da amiga imaginária, que se assemelha mais a uma boneca ou brinquedo que sai do armário do que a uma criação da mente de Beto. Diante disso, sugiro que o grupo reavalie o público-alvo do espetáculo. Se a intenção é focar em crianças menores, o que considero adequado, vale uma revisão do texto, com diálogos mais curtos e mais investimento nas imagens lúdicas que a animação em luz negra proporciona. Os temas sensíveis podem permanecer, mas com uma abordagem mais alinhada à faixa etária.
O espetáculo apresenta boas ideias, cenas bonitas e qualidade na execução. Acredito que os ajustes dos critérios podem fazer a diferença na recepção da obra.
Encantos do Sertão: Tradição e afetos
Idealizado por Neide Kooka e dirigido por Fernando Souza, o espetáculo Encantos do Sertão é uma realização da Kooka Criações, de Feira de Santana (BA). A obra nasce do desejo de Neide de unir a contação de histórias com elementos da cultura nordestina, utilizando músicas autorais para abordar os laços de afeto da personagem Maria com sua avó, que lhe deixou herança de histórias, e com seus amigos, companheiros de estrada.
Segundo o grupo, o espetáculo mistura as linguagens do teatro e da música, convidando o público a entrar no mundo fantasioso de Maria, que, ainda pequena, aprendeu a contar histórias com suas avós. Já adulta, ela herdou uma mala recheada de objetos que evocam em sua memória histórias e músicas sobre amor, amizade, companheirismo e gratidão. Com esses valiosos presentes, Maria decide sair estrada fora, acompanhada dos amigos Chico e Tião, que, assim como ela, também amam contar histórias.
Encantos do Sertão apresenta elementos de cena com grande potencial, mas que ainda precisam ser mais trabalhados. A dramaturgia apresenta um caminho possível, mas precisa ser melhor desenvolvida. A relação da personagem com a avó e a relação com seus companheiros, por exemplo, revelam um medo da perda de pessoas queridas que está instalado de forma muito tímida no texto. Essa temática pode enriquecer a dramaturgia, trazendo mais significados e motivações para as ações das personagens.
As histórias que Maria conta refletem a importância da convivência e do afeto entre seus amigos, Chico e Tião. Portanto, ao explorar mais o material que o grupo já possui, Neide Kooka encontrará respostas para aprimorar a dramaturgia e encontrar o tom e formato ideais para enriquecer a obra.
Quanto aos elementos de cena, criados com muito capricho pela própria Kooka, como as flores de crochê, os bonecos de cabaça e de palha, entre outros detalhes, acabam se perdendo entre as diversas distrações visuais. Acredito que, ao simplificar a estrutura cenográfica e eliminar elementos que estão ali apenas para "decorar", sem função direta na cena, os belos itens artesanais usados ??na contação da história ganhariam mais destaque, tornando o espetáculo mais coeso e conceitualmente definido.
Kooka apresenta uma montagem que já possui os ingredientes para um ótimo espetáculo, mas agora é preciso revisitar a obra, ajustar a adaptação e lapidar o material bruto com atenção. Dessa forma, o verdadeiro potencial da peça será revelado.