O meu relato dá conta dos três primeiros dias, tempo em que eu e Marconi Arap, do Grupo Teca, estivemos imersos nas ações propostas na programação do festival, nas conversas revigorantes dos almoços e cafés da manhã, na energia pulsante do centro cultural Paideia. Tivemos a alegria de vivenciar de perto cada detalhe, compreender na plenitude a “janela para a utopia” construída em conjunto durante os dias de festival. Através dessa janela podemos vislumbrar novas paisagens e nos alimentar de sonhos possíveis, novos projetos e novas parcerias.

Ao abrirmos essa janela, percebemos que não estamos sós.

Nós com Aglaia Pusch (Cia Paidéia) e Cleiton Echeveste (CBTIJ) e nós com Amauri Falsetti (Cia Paidéia)

Ao percorrermos o lindo espaço da Centro Cultural Paideia, reconhecemos em cada detalhe os anos de luta e dedicação. A Cia Paideia, prestes a completar 25 anos de existência, segue se renovando com a presença de jovens e talentosos artistas, que se unem aos experientes Aglaia e Amauri para coordenar um evento de alto nível com leveza, afeto, como se todos os presentes fossem parte da família. A preocupação em manter o dialogo com os arredores do teatro, falar para a sua comunidade, reforça um posicionamento político e uma responsabilidade social que serve de exemplo para todos os artistas que gerem seus próprios espaços.

Já no primeiro dia, pudemos vivenciar a força do encontro, com artistas de vários lugares reunidos sob a condução brilhante da diretora holandesa Liesbeth Coltof. Refletimos por três dias, através de exercícios de escrita e improvisação, sobre a representação da mulher e da menina no teatro juvenil. Uma experiência que ocupou nossas manhãs de 21 a 23 de setembro e que impactou a todes pelas trocas de saberes e aprendizados. Liesbeth, que tem um trabalho consolidado na Holanda, premiada e respeitada em vários países, mostrou-se uma artista generosa, que conduz com muita habilidade seus alunes, sem nunca abrir mão da plástica, da estética, da poesia. É uma mulher de afetos, do olho no olho, do afago e do “well done!” quando chegávamos a um resultado positivo. Ao final do terceiro dia, muitas janelas construídas a partir da janela principal, aquela que nos leva para a utopia.

Grupo de artistas participantes da oficina com Liesbeth Coltof.

Nesses três primeiros dias, também pudemos assistir a espetáculos que traziam formas diferentes de contar narrativas tradicionais e formas diferentes de abordar temas sensíveis na infância, com poesia e delicadeza. Capuchinho, do Teatro Plage, de Portugal, apresentou uma linda versão da Chapeuzinho Vermelho, integrando na fala da mãe-narradora a linguagem de sinais. A comunicação corporal dos três atores, encantadora. O Grupo Sobrevento, sob a interpretação de Sandra Vargas, falou sobre memória, sobre saudade, sobre desenterrar sentimentos secretos que estão dentro de nós. O espetáculo Terra é teatro-poesia. Essas duas preciosidades tinham como público alvo bebês e crianças da primeira infância. Preencheu o coração de todas as idades.

O espetáculo Tic Tac, do argentino Omar Alvarez, teve um público de idade um pouco maior. A peça, que contava com lindos bonecos, falava sobre um despertador antigo que revela a sabedoria de tempos felizes que se vê ameaçado pelo Wi Fi, um vilão representado por um celular. A abordagem do texto me fez pensar se é realmente eficaz “vilanizar” a tecnologia, esta que faz parte da vida das crianças, nativas digitais. Entendo a mensagem e a preocupação sobre uso exacerbado do celular e internet. Mas, pela própria reação das crianças na plateia, penso que podemos levantar esse tipo de discussão numa abordagem menos maniqueísta. Contudo, à exceção da representação do feminino na narrativa, que achei um tanto descuidada, a peça tinha bonecos e soluções cênicas interessantes.

A menina de Uruçuca

No dia 22, quinta feira, o Grupo Paideia estreou um novo espetáculo, escrito e dirigido por Amauri Falseti. Ana Luiza Junqueira se juntou a Amauri na direção. No elenco, Aglaia Puch (que também assinou o figurino), Tertuliano Kelvin, Luisa Crobelatti, Rogério Modesto e Suzana Azevedo, interpretando lindamente a menina de Uruçuca.

Como é bonito ver em cena uma história verdadeira. Não, não sei se a história da menina de Uruçuca foi inspirada numa menina de verdade. Mas essa menina é tão verdadeira, pela forma como ela fala com seus pais, como ela brinca com seu boneco, que ganha vida diante dos nossos olhos, como ela conversa com seu livro de histórias e seu livro de pinturas. E, principalmente, a menina de Uruçuca era para mim verdadeira, porque ela era eu. Eu fui essa menina que deitava na cama com a mente cheia de ideias e me punha a imaginar. Eu fui essa menina que olhava para as telas dos pintores e imaginava personagens ganhando vida, conversando comigo, vivendo algum tipo de aventura. A minha relação com as pinturas na infância e as histórias que eu criava a partir delas ficou tão marcada em mim, que reverbera até hoje nas minhas escolhas profissionais e na forma como eu vivencio o mundo. Me tornei atriz, escritora, educadora. Criei uma série de animação para a TV em que crianças tem o poder mágico de entrar em telas de pintores renomados e viver aventuras. Essa mesma série virou objeto de estudo no meu mestrado e doutorado. Eu sou a menina de Uruçuca que nasceu e cresceu artista.

A menina de Uruçuca vivida por Suzana com tanto frescor e naturalidade tocou fundo em mim. O texto de Amauri contou um pouco da minha história. Os personagens que saíram dos livros e das telas, eu já conversei também com eles, um dia! Ainda converso.

Eu desejo vida longa a esse trabalho, porque, tenho certeza, ele vai inspirar muitas meninas e meninos, vai instigar a curiosidade e o amor pela arte, vai estimular a imaginação e ampliar os olhares. Precisamos de meninas e meninos de Uruçuca e todas as partes do mundo. Que cresçam com a compreensão do poder da arte e salvem o mundo. 

 Importante destacar também as artes visuais e projeções de Hans Marin. Eu confesso uma certa resistência ao uso da projeção mapeada nos cenários teatrais. Já vi muitos espetáculos que usavam a projeção de forma ilustrativa ou pouco criativa.  Nós mesmos, do TECA, já experimentamos vídeo mapping em alguns trabalhos e consideramos que ainda estamos num processo de experimentação, investigando a melhor maneira de usar essa ferramenta que, sabemos, veio para ficar.

 Mas, no caso de A menina de Uruçuca, as projeções estão integradas à cena, dialogam com os personagens, e nos ajudam a enxergar exatamente a magia que a menina de Uruçuca consegue ver nas páginas do livro de pinturas de Pieter Bruegel. E quando as personagens daquelas pinturas aparecem no quarto da menina...aí...é teatro puro!

Perspectivas Regionais do teatro para crianças e jovens

 

            Essa foi a mesa de reflexão, mediada por Dib Carneiro Neto, em que tive o prazer de participar, juntamente com Paulo Merísio (Trupe de Truões de Uberlândia), Amauri Falseti (Cia Paideia de SP), Poliana Bicalho (Festival Petiz de Salvador) e Omar Alvarez (Compañia Omar Alvarez Títeres, da Argentina). Momento de ouvir e trocar experiências, dividir angústias e planejar soluções. Encontro que pretendeu refletir sobre as perspectivas regionais e compreender as diferenças no fazer teatral dentro de um território tão vasto, mas que revelou tantas semelhanças. Somos DIFERENTES IGUAIS. O poder que nasce dessa constatação é imenso. Por mais encontros que nos fortaleçam!

 

Fica o convite

            Poderia falar muito mais sobre esses três dias. Ficarão guardadas muitas memórias, como o sorriso acolhedor da palhaça Manela dando boas-vindas aos presentes. Em especial, guardo uma imagem tão bonita, repetida todos os dias, quando estávamos todo juntos, almoçando, e o chef e assistentes apareciam no refeitório. Todos se levantavam e aplaudiam, prestigiando a arte feita na cozinha. Todos nós nos alimentamos dela e agradecemos a partilha. Essa imagem resume bem o Festival Paideia. O grupo nos oferece generosamente o espaço para compartilharmos e nos alimentarmos de arte. A nós cabe aplaudir de pé.  

            Fica o convite para conhecer o festival e seguir construindo pontes e janelas. Fica o convite para artistas que queiram escrever sobre os últimos três dias de programação (voltamos antes porque estamos em cartaz em Salvador).

            Durante sua oficina, Liesbeth nos contou sobre uma menina de 7 anos que deu a ela uma linda definição de Deus: Um dia uma bola muito grande explodiu no espaço e deus é a força que tentar juntar esses pedaços novamente. Ao abrir a janela para a utopia, passei a acreditar que encontros como o Festival Paideia, também são capazes de produzir essa força.

           

 

 

 

 

 





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